Maria Ritta
Maria Ritta, também registrada como Maria Ritta, foi uma mulher negra escravizada que viveu em Uberaba, Minas Gerais, no século XIX. Tornou-se conhecida por protagonizar uma denúncia contra seu senhor, o Barão de Ponte Alta, em 1886 - episódio raro na documentação oitocentista e uma das poucas referências registradas em que uma pessoa escravizada recorreu à Justiça imperial.[1]
Sua trajetória é lembrada como exemplo de resistência aos maus-tratos, destacando a atuação de mulheres negras na luta por dignidade nos anos finais da escravidão no Brasil como um dos poucos casos documentados em que uma pessoa escravizada recorreu à justiça imperial.[2]
Biografia
[editar | editar código]Maria foi uma mulher preta nascida em 1851, filha de Thomas e Ritta, pessoas escravizadas libertas. Apesar de haver relatos de que seriam possivelmente duas crianças associadas à ela, somente uma criança de entre 2 a 3 anos foi indicada por testemunha com a mulher em zona urbana. Foi escravizada na fazenda do Barão de Ponte Alta, Antônio Elói Casimiro, na região rural da cidade, onde exercia funções como cozinheira, lavadeira e engomadeira.[2]
Ao sofrer cotidianamente com excessivos maus tratos físicos, como açoites, espancamentos e agressões; abusos morais, como constantes humilhações, xingamentos e desqualificação de sua condição humana; e etc., no dia 22 de fevereiro de 1886, "fugiu da propriedade do seu senhor com o filho nos braços, correntes ao pescoço, marcas de chicotadas nas costas e nas nádegas, deixando para trás um presente de castigos físicos."[2] Dirigiu-se à cidade de Uberaba onde apresentou denúncia formal contra seu senhor de engenho, não para pedir sua liberdade, mas para pedir proteção e amenizar suas penas, castigos e dores. Em um contexto onde a maioria das denúncias se perdia na conivência das autoridades com os senhores, apesar das múltiplas evidências, como o laudo médico que constatou ferros fixos ao seu corpo e marcas de açoites com cerca de quinze dias, e as inúmeras testemunhas dos crimes, o caso foi encerrado sem punições efetivas ao Barão, que também era Coronel, Juiz, Político, chefe do Partido Liberal local e membro de uma associação abolicionista. Maria Ritta tinha como parceiro um rapaz chamado de João Machado, também escravizado do Barão de Ponte Alta, que após o ocorrido foi transferido para outra propriedade de seu senhor.[3]
A história de Maria Ritta não é apenas um registro de violência, mas, sobretudo, um testemunho de resistência, força e luta abolicionista. Ela representa milhares de mulheres negras que, mesmo sob condições extremas, se recusaram a aceitar o silêncio e a submissão impostos pela escravidão no Brasil.[1]
Processo Judicial
[editar | editar código]Maria Ritta fugiu da fazenda que a mantinha cativa, e ao chegar à região urbana de Uberaba, solicitou ao padre local, de nome não mencionado, por sua ajuda, este somente escreveu uma carta destinada ao Barão de Ponte Alta, intercedendo pela mulher. Porém, ao retomar à propriedade e entregá-la ao senhor, a carta foi destruída, Maria foi espancada com um tamanco, aprisionada em um tronco e, posteriormente, fora realizado o uso de ferros em seu pescoço e tornozelos, instrumentos que permaneceram em seu corpo por dias, inclusive durante a fuga que viria à fazer em seguida.[2] Esta que gerou o processo judicial aberto em fevereiro de 1886, quando ela se apresentou à Subdelegacia de Polícia de Uberaba, denunciando seu senhor, Antônio Elói Casimiro, por maus tratos.[4]
A denúncia foi registrada oficialmente após a realização de um auto de corpo de delito, que se tornou peça central da acusação. No exame, os peritos constataram que Maria Ritta ainda trazia acoplados ao corpo instrumentos de contenção:
- uma argola de ferro no pescoço, presa por duas hastes de ferro verticais, ligadas por uma peça em forma de "S" sobre o alto da cabeça, dificultando a movimentação do pescoço;
- uma corrente nos tornozelos, composta por duas argolas ligadas por um elo central;
- e diversas marcas nas nádegas, correspondentes a açoites aplicados há aproximadamente quinze dias.
Apesar da descrição detalhada desses instrumentos, os peritos, Doutor José Joaquim de Oliveira Teixeira e Doutor Tomaz Pimentel[4], classificaram as lesões como "simples arranhões", sem risco à vida, embora reconhecessem a gravidade dos instrumentos utilizados.
Testemunhos
[editar | editar código]O processo seguiu com a colheita de depoimentos de várias testemunhas, que ofereceram versões divergentes sobre os fatos.[1] Entre elas, estavam tanto indivíduos livres da cidade, quanto escravizados da própria fazenda do Barão. Essas falas revelam as tensões entre o medo da repressão e a tentativa de defesa da escravizada.
Depoimentos que confirmaram os maus-tratos
[editar | editar código]- Bernardino, 40 anos, morador de Ponte Alta, natural de Sacramento, escravizado do Barão de Ponte Alta, afirmou que Maria Ritta era frequentemente castigada, inclusive, como havia ela mesmo relatado, diversas vezes por motivos irrelevantes. Entretanto, responsabilizou a baronesa, D. Francisca Augusta de Oliveira, como principal autora dos maus tratos, pontuando o episódio em que Maria fora açoitada pela baronesa por ter preparado e servido carne para alguém cujo Francisca não havia ordenado[4].
- Antônio Francisco Gonçalves, 23 anos, ferreiro e residente de Campo Bello, região onde se localizava as terras de Antônio Elói, alegou ter visto Maria Rita chegar na cidade com um gancho de ferro grande no pescoço e um argolão no pé, e confirmou que era de conhecimento público que era o costume de Barão da Ponte Alta aplicar castigos físicos em seus escravizados.[1]
Depoimentos que tentaram minimizar a violência
[editar | editar código]Houve testemunhas, no entanto, que tentaram minimizar a situação. Algumas pessoas livres declararam que nunca haviam presenciado cenas de abusos do Barão e que Maria Rita já teria fugido anteriormente, insinuando que sua conduta era problemática e que os castigos poderiam ter sido justificados. Em contraponto, quando as entrevistas eram realizadas para com os escravizados, havia sempre uma pergunta final, sobre o Barão ser humano ou desumano em seu tratamento com seus escravos. Em todas as respostas registradas, o sujeito foi classificado como desumano pelos demais.[4]
Encerramento
[editar | editar código]O processo judicial envolvendo Maria Ritta foi formalmente arquivado em outubro de 1886, sem qualquer consequência, punição ou intimação aplicada ao acusado, mesmo diante de provas materiais evidentes, laudo médico e testemunhos. O delegado, ao registrar o caso, fez referência à Lei do Ventre Livre (Lei n.º 2.040, de 28 de setembro de 1871), cujo artigo 1.º declarava livres os filhos de mulheres escravizadas nascidos após sua promulgação, mas que também estabelecia dispositivos para coibir castigos cruéis e garantir certo amparo legal às pessoas escravizadas. Em complemento, o Decreto n.º 5.135 de 1872, que regulamentava a lei, proibia expressamente o uso de instrumentos como o tronco, colares de ferro ou quaisquer outros meios de suplício que implicassem tortura, restringindo as punições a “correções moderadas”.[3]
No entanto, apesar de Maria Ritta ter sido encontrada com ferros no pescoço e nos tornozelos, além de marcas de açoites recentes, a denúncia não resultou em responsabilização do senhor. Em resposta ao comunicado oficial, o Barão de Ponte Alta manteve-a em cativeiro, separada da filha, permanecendo submetida à lógica da escravidão até a Abolição da Escravidão em 1888, sem que houvesse qualquer reparação ou proteção legal efetiva.[1]
A própria lentidão e falta de impulso no processo judicial mostram que a intenção institucional era desmobilizar a denúncia até seu esquecimento. Ainda assim, a atitude de Maria de denunciar, mesmo sob risco e em condições extremas, permanece como um símbolo de resistência e afirmação de dignidade, mesmo que silenciado explicitamente pelo estado.[4]
Atuação das autoridades e a lentidão do processo
[editar | editar código]O caso de Maria Ritta, apesar de sua gravidade e das evidências apresentadas, expôs as limitações e omissões do sistema judicial imperial brasileiro no tratamento de denúncias feitas por pessoas escravizadas. Logo no início do processo, é registrada a ausência do promotor público durante a realização do Auto de Corpo de Delito[4], de modo formal, pelos próprios oficiais, sob a justificativa de que ele "não pôde comparecer", sem maiores explicações, o que contraria as diretrizes da legislação da época, que previa a presença do representante do Ministério Público em casos criminais.
O procedimento se iniciou oficialmente em fevereiro de 1886 e estendeu-se até outubro do mesmo ano, sem a adição da colheita de alguns depoimentos, também não houve uma intimação formal do acusado (o Barão da Ponte Alta) para que respondesse diretamente às acusações, tampouco avanço em direção a um julgamento ou qualquer tipo de responsabilização penal.[1]
Para além disso, as testemunhas ouvidas, foram, em sua maioria, subordinadas diretas ou pessoas vinculadas ao entorno social e econômico do Barão, como escravizados da própria fazenda, trabalhadores da região e moradores de Uberaba que circulavam o meio dos poderes político e econômico do criminoso.[1] Essa seleção de testemunhas demonstra como a estrutura judiciária, mesmo quando aparentemente cumpria o rito formal, funcionava dentro dos limites impostos pelas hierarquias sociais e raciais da época.
Outro ponto é a própria desqualificação do sofrimento de Maria Ritta pelo laudo pericial. Mesmo que os médicos tenham descrito os ferimentos ocasionados pelo Barão na mulher, optaram por classificar estes como "leves", evitando assim o enquadramento do senhor no crime de sevícia (maus tratos sob quaisquer âmbito), já previsto em lei desde meados do século XIX.[4] A influência política e social do Barão de Ponte Alta também deve ser considerada para compreender o desfecho do processo. Na época, ele era um dos homens mais influentes da região, ocupando funções diversas já mencionadas anteriormente no texto; esse perfil político privilegiado praticamente assegurava imunidade de fato frente a acusações de pessoas escravizadas, sobretudo em um município interiorano como Uberaba, ainda amplamente controlado pela elite rural.[3]
O arquivamento do processo, sem nenhuma sanção ou sequer um interrogatório formal do acusado, revela não apenas a ineficácia judicial, mas também a conivência estrutural da Justiça com os senhores de escravizados.[1] Mesmo nos últimos anos do Império, com leis abolicionistas já em vigor e crescente mobilização social, o Estado brasileiro ainda falhava em garantir o mínimo de proteção a pessoas como Maria Ritta, cuja denúncia foi recebida com descrédito institucional e apagada por um sistema jurídico moldado para preservar a ordem senhorial e racial vigente.[4]
Referências Bibliográficas
[editar | editar código]- ↑ a b c d e f g h Souza, Júlio (julho de 2013). «SOCIEDADE E ESCRAVIDÃO EM UBERABA: O PROCESSO CRIMINAL DE MARIA RITA» (PDF). XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH. Consultado em 20 de julho de 2025 line feed character character in
|titulo=at position 46 (ajuda) - ↑ a b c d Souza, Tiago (2012). «ARQUIVOS DA HISTÓRIA E HISTÓRIAS DE VIDA: diálogos com a Educação Popular» (PDF). Consultado em 20 de julho de 2025
- ↑ a b c Souza, Júlio (2013). «Sociedade e escravidão no século XIX: crianças escravas em Uberaba 1871-1888» (PDF). Consultado em 20 de julho de 2025
- ↑ a b c d e f g h Diniz, Marise (janeiro de 2010). «Auto de corpo de delicto feito em Maria Rita, escrava do Barão de Ponte Alta. Escrava Maria Rita, uma história de resistência». Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Consultado em 20 de julho de 2025
Bibliografia
[editar | editar código]- SOUZA, Júlio César de. SOCIEDADE E ESCRAVIDÃO EM UBERABA: O PROCESSO CRIMINAL DE MARIA RITA. XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH, Natal - RN, 2013.
- SOUZA, Tiago Zanquêta de. Arquivos da história e histórias de vida: diálogos com a educação popular. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Uberaba, Uberaba, 2012.
- SOUZA, Júlio César de. Sociedade e escravidão no século XIX: crianças escravas em Uberaba 1871-1888. 2013. 97 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2013.
- DINIZ, Marise Soares. Auto de corpo de delicto feito em Maria Rita, escrava do Barão de Ponte Alta. Escrava Maria Rita, uma história de resistência. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, v. 23, n. 1, 2011.